domingo, março 25, 2007

A Montanha Mágica, de Thomas Mann

“Uma das maiores características do romance é, sem dúvida, o seu poder de expressão de uma sociedade, pois que, nesse particular, ele tem sobre a História a grande vantagem de não ser um narrador de fatos, mas um transfigurador da vida, no que ela tem de mais típico, isto é, o caráter de seus homens e do seu tempo. (...) Como é absurdo procurar-se dados exatos nas páginas de um romance, também terá poucas probabilidades de êxito aquele que buscar o caráter de uma sociedade nas páginas de um livro de História. É esse o ponto em que a História e o Romance se completam. Isso vem do grande poder interpretativo de que o romance pode dispor. O romance é, antes de tudo, uma realidade psicológica. A História é uma ciência ‘oficial’. (...) Aquilo que representa a parte íntima de uma sociedade, isso permanece indevassável para os historiadores. A fixação definitiva desse caráter para a posteridade caberá unicamente ao romancista.”

É assim que Wilson Martins caracteriza o romanesco, no livro Imagens da França. Acabo de ler A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e esse calhamaço de mil páginas, de fato, traz algo do espírito que dominou o início do século XX na Europa. É a sensação do mal-estar antes da tragédia - no caso, a Primeira Guerra Mundial. Os sete anos de internação do jovem Hans Castorp num sanatório nos Alpes suíços são marcados por esse mal-estar que culmina na luta, na ausência de diálogo, na perplexidade ante a perda de valores que nortearam o povo europeu durante séculos.

Ouso dizer, entretanto, que, apesar de ser um livro interessante nesse aspecto da representação do espírito de uma geração, A Montanha Mágica não é um grande romance. Ele carece de virtudes essenciais do bom romance, aquelas virtudes em que Balzac e Walter Scott eram mestres. O maior defeito do livro é a falta de ritmo; muitas de suas páginas sofrem de um mal sobre o qual o próprio livro discorre: o tédio. Há muitas passagens tediosas no meio daquelas mais marcantes. Faltou a Mann a humildade e a coragem para depurar a história, aparando-lhe o desnecessário.

A propósito do autor alemão, Otto Maria Carpeaux escreveu, e eu assino embaixo:

"Na verdadde, Thomas Mann é um pensador confuso, é o maior dos escritores de segunda ordem, e a alemanidade não é a essência do seu ser, mas o amor infeliz dum bastante fraco herói de tragédia. Nos romances de Thomas Mann há muitas discussões e muitas reflexões; o leitor desprevenido abre a boca, sufocado sob enormes massas de pensamentos. Mas não há pensamento; em particular, nenhum pensamento original. (...) Não sendo pensador original ou claro, Mann é um grande manejador de pensamentos, o que é a primeira condição do ensaísta. Thomas Mann é um admirável ensaísta. Apenas, é preciso saber que um ensaísta não é um causeur engraçado, mas um escritor sério, cujo pensamento torturado é transfigurado por um raio de poesia. (...) Mann é muito pobre em imaginação, (...) o maior escritor de uma época artificial e decadente, (...) não conhece metafísica nenhuma. (...) Durante toda a longa vida laboriosa, não passou de um pensador confuso." (Ensaios Reunidos - 1942-1978. Org. Olavo de Carvalho)

É um julgamento duro, mas que se há de fazer? A Montanha Mágica é um romance falhado. Não tem o impacto da obra-prima de Mann, a novela Morte em Veneza. Falta-lhe o "raio de poesia" de que fala Carpeaux. Talvez Mann tenha falhado por soberba, pois talento não lhe faltava, como comprova essa linda e dolorosa passagem, na qual os primos Hans Castorp e Joachim Ziemssen passeiam acompanhados de Karen Karstedt, jovem franzina de dezenove anos, muito doente, nos últimos dias de vida:

Subiam lentamente, em fila indiana, porque a trilha aberta a pá não permitia irem lado a lado. Deixando atrás e abaixo as mais altas das casas construídas na vertente, olhavam, enquanto subiam, a paisagem familiar na sua magnificência invernal, que mais uma vez se deslocava na perspectiva e lhes abria um outro aspecto. Dilatava-se rumo ao nordeste, em direção à entrada do vale. Surgia a esperada vista do lago circular, rodeado de bosques, congelado e coberto de neve. Atrás da sua margem oposta, os planos inclinados das montanhas pareciam encontrar-se no solo, e mais além assomavam cumes desconhecidos, sobrelevando uns aos outros, diante do céu azul. Os três contemplaram tudo isso, detendo-se na neve, em frente ao portão de pedra que dava acesso ao cemitério. A seguir entraram, abrindo os batentes de ferro, que estavam simplesmente encostados.

Também no interior acharam trilhas limpas de neve, que passavam por entre as elevações dos túmulos cercados de grades e estufados de neve, esses leitos bem-dispostos e simétricos, com suas cruzes de pedra ou de metal, e com seus pequenos monumentos adornados de medalhões e dísticos. Não se ouvia nem se via ninguém. A calma, o isolamento, a paz do lugar pareciam profundos e íntimos em muitos sentidos. Um anjinho ou menino de pedra, com um boné de neve colocado obliquamente na cabeça, quedava-se em alguma parte no meio das moitas e fechava os lábios com um dedo; podia passar pelo gênio do lugar, quer dizer, o gênio do silêncio, de um silêncio que se afigurava nitidamente como a negação e o antípoda da palavra falada, como um ato de emudecer, portanto, mas absolutamente não era desprovido de conteúdo ou de vida. Para os dois visitantes do sexo masculino aquela seria sem dúvida uma ocasião de tirar os chapéus, se os tivessem levado. Mas, já que andavam descobertos - também Hans Castorp passara a fazê-lo -, limitaram-se a uma atitude reverente, caminhando com o peso do corpo sobre as pontas dos pés e fazendo uma espécie de pequenas mesuras para os lados, enquanto seguiam, em fila indiana, Karen Karstedt, que conduzia o cortejo.

A forma do cemitério era irregular. Começava por estender-se num retângulo estreito em direção ao sul, para depois ampliar-se em dois sentidos, por meio de outros retângulos. Evidentemente se haviam feito necessários repetidos aumentos, tendo sido acrescentadas partes dos campos vizinhos. Mesmo assim, o recinto parecia novamente ocupado na sua quase totalidade, ao longo dos muros tanto como na zona interior, menos apreciada em geral. Era difícil assinalar um lugar onde mais alguém, em caso de emergência, pudesse ser enterrado. Discretamente, os três companheiros caminharam durante longo tempo pelas estreitas trilhas e corredores, entre as sepulturas. Estacavam, de vez em quando, para decifrar um nome com as respectivas datas de nascimento e de morte. As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais diversas: havia ingleses, russos ou ao menos esavos, mas também alemães, portugueses e outros. As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara definitivamente à existência horizontal.

Em determinado lugar, entre a multidão de jazigos, no interior do campo-santo, quase no seu centro, encontraram um pedacinho de terra ainda rasa, do comprimento de um homem deitado, um pedacinho desocupado, entre dois túmulos em cujas pedras estavam penduradas coroas de perpétuas. Detiveram-se ali, a moça um passo à frente dos seus companheiros, e leram as tristes inscrições gravadas nas pedras, Hans Castorp numa atitude de abandono, com as mãos entrelaçadas, a boca aberta e os olhos sonolentos; o jovem Ziemssen em posição de sentido, não somente ereto, mas até um pouco inclinado para trás. E ambos os primos, possuídos de uma curiosidade simultâneas, lançaram um olhar de esguelha para o rosto de Karen Karstedt. Ela percebeu, apesar de toda a discrição, e deixou-se ficar ali, acanhada e humilde, com a cabeça avançada um tanto obliquamente. Com os olhos piscando nervosamente, esboçou um sorriso forçado.

A Montanha Mágica (Der Zauerberg), de Thomas Mann. Tradução de Herbert Caro. Editora Nova Fronteira.

#44 - A Lenda dos Beijos Perdidos



A Lenda dos Beijos Perdidos
Brigadoon
EUA, 1954
Dir.: VincenteMinnelli

"A classic - if not
the classic - Minnelli musical, Brigadoon is an explicit statement about (and partial criticism of) the notion that an artist only lives through his art, preferring its reality to the world's. The film begins with a disenchanted Kelly in flight from 'civilised' New York, lost in the Scottish Highlands and stumbling on the legendary village of Brigadoon which only appears for one day each century. There he meets the love of his life Fiona (Charisse), only to discover both the truth about Brigadoon and that some of its inhabitants want the real life he is fleeing from, even though it will destroy Brigadoon. Disillusioned when the villagers kill the would-be escapees, Kelly leaves. But in New York, amidst the chaos of modern living, he discovers he is yearning for Fiona and Brigadoon. He returns to Scotland where his faith (and Fiona's love) conjures up Brigadoon. This time he settles there, accepting that the price of happiness is to live but one day a century. As this description of the film makes clear, it (and Minnelli's musicals in general) is escapist to say the least. However, Minnelli's musicals must be seen alongside his dramas which examine the other side of the coin, the problems of confronting reality, rather than evading it or constructing one's own." Time Out

#45 - Laura



Laura
Laura
EUA, 1944
Dir.: Otto Preminger

"A mise-en-scène de Preminger é arquitetada rigidamente, e, tendo a completa noção do impacto de cada especificidade cinematográfica, mantém sua forma de filmar, sem perder a fluidez, enquanto o sentido também permanece igual. E isto acarreta num impacto ainda maior quando suas estruturas – tanto narrativas como estilísticas, visto este atrelamento recíproco – são abaladas. A câmera está totalmente centrada no seus personagens, acompanha cada movimento com eles, descortina os ambientes em conjunto. Mesmo nos pequenos movimentos dos personagens, a câmera sente a necessidade de também se re-situar, re-equilibrar a composição, permitir que todos os personagens continuem em pé de igualdade; exceto nos singulares momentos em que a narrativa não valoriza mais um personagem, mas diminui o outro, ou temos um corte para o primeiro plano, brusco pela ausência de cortes, e que demonstra uma reação digna de isentar-se do resto. O cenário, por sua vez, situa e estabelece cada personagem, sempre tendo seu lugar na mise-en-scène. O caso mais notório é o quadro de Laura, que num primeiro momento era o arcabouço de todas as idealizações e o pivô do amor de McPherson (Dana Andrews), e que se impunha na composição como uma pessoa. E mesmo com a inesperada volta de Laura, o quadro continua lá, onipresente, representando a ambigüidade das "Lauras", do crime, do amor e da sociedade – sem nunca deixar de ser um personagem." Lucas Barbi

#46 - Chinatown



Chinatown
Chinatown
EUA, 1974
Dir.: Roman Polanski

"The whole movie is a tour de force; it's a period movie, with all the right cars and clothes and props, but we forget that after the first ten minutes. We've become involved in the movie's web of mystery, as we always were with the best private-eye stories, whether written or filmed. We care about these people and want to see what happens to them. And yet, at the same time, Polanski is so sensitive to the ways in which 1930s' movies in this genre were made that we're almost watching a critical essay. Godard once said that the only way to review a movie is to make another movie, and maybe that's what Polanski has done here. He's made a perceptive, loving comment on a kind of movie and a time in the nation's history that are both long past. Chinatown is almost a lesson on how to experience this kind of movie." Roger Ebert

#47 - Branca de Neve e os Sete Anões



Branca de Neve e os Sete Anões
Snow White and the Seven Dwarfs
EUA, 1937
Dir.: David Hand, Walt Disney

"Disney's inspiration was not in creating Snow White but in creating her world. At a time when animation was a painstaking frame-by-frame activity and every additional moving detail took an artist days or weeks to draw, Disney imagined a film in which every corner and dimension would contain something that was alive and moving. From the top to the bottom, from the front to the back, he filled the frame. (...) ''Snow White and the Seven Dwarfs'' was immediately hailed as a masterpiece. (The Russian director Sergei Eisenstein called it the greatest movie ever made.) It remains the jewel in Disney's crown, and although inflated modern grosses have allowed other titles to pass it in dollar totals, it is likely that more people have seen it than any other animated feature. The word genius is easily used and has been cheapened, but when it is used to describe Walt Disney, reflect that he conceived of this film, in all of its length, revolutionary style and invention, when there was no other like it--and that to one degree or another, every animated feature made since owes it something." Roger Ebert

#48 - O Joelho de Claire



O Joelho de Claire
Le Genou de Claire
França, 1971
Dir.: Eric Rohmer

"Muito mais criar ambiências com a luz do que utilizá-la para recortar objetos e rostos. Como esquecer da mágica cor das tardes ociosas em frente ao mar de O Joelho de Claire (...)? O cinema de Eric Rohmer lida primeiramente com a instalação da câmera em um espaço, e apenas posteriormente com os comportamentos e as falas dos personagens. A presença bruta, pujança do espaço real físico faz sempre petição de princípio em relação às tramas, às intrigas, às evoluções e circunvoluções da narrativa". Ruy Gardnier, Contracampo

#49 - As Três Noites de Eva



As Três Noites de Eva
Lady Eve
EUA, 1941
Dir.: Preston Sturges

"Preston Sturges’ The Lady Eve is some kind of great movie. And yet, like most of the best Hollywood movies of its time, its emotional range is narrow, it makes almost no pretensions to observation of American life or to social satire, its characterization is almost nil and its conflicts a clash of stereotypes. It is, in short, “classic” Hollywood and so has none of the features by which we are accustomed to recognize serious art or dramaturgy. And yet it can surely be argued from the experience of this wonderfully funny movie that its effect on us is somehow serious—that it has the richness, completeness, and resonance by which we recognize something fully and seriously done, whether we can explain it or not—and no one has yet quite accounted for or settled on a way of explaining the power and force, the peculiar beauty of the Hollywood studio film at its best." James Harvey, Criterion Collection

sábado, março 17, 2007

Melhores do cinema em 2006

Lista atrasadíssima dos meus filmes favoritos em 2006:

10 MELHORES FILMES

1. O Novo Mundo (The New World - EUA, dir. Terrence Malick)


2. 2046 - Os Segredos do Amor (2046 - Hong Kong, dir. Wong Kar-wai)




3. O Último Mitterrand (Le Promeneur du Champ de Mars - França, dir. Robert Guédiguian)




4. Miami Vice (Miami Vice - EUA, dir. Michael Mann)




5. Saraband (Saraband - Suécia, dir. Ingmar Bergman)




6. Eleição - O Submundo do Poder (Hak Se Wui - Hong Kong, dir. Johnnie To)




7. A Dama de Honra (La Demoiselle d'Honneur - França, dir. Claude Chabrol)




8. Missão Impossível 3 (Mission Impossible 3 - EUA, dir. J. J. Abrams)




9. Os Infiltrados (The Departed - EUA, dir. Martin Scorsese)



10. Espelho Mágico (Espelho Mágico - Portugal, dir. Manoel de Oliveira)



DIRETOR
Wong Kar-wai (2046 – Os Segredos do Amor)
Ingmar Bergman (Saraband)
Johnnie To (Eleição – O Submundo do Poder)
Michael Mann (Miami Vice)
Terrence Malick (O Novo Mundo)


ATOR
Michel Bouquet (O Último Mitterrand)
Benoît Magimel (A Dama de Honra)
Colin Farrell (O Novo Mundo)
Erland Josephson (Saraband)
Tony Leung (2046 – Os Segredos do Amor)


ATRIZ
Valeria Bruni Tadeschi (O Amor em 5 Tempos - 5x2 - França)
Leonor Silveira (Espelho Mágico)
Liv Ullmann (Saraband)
Natasha Richardson (A Condessa Branca - The White Countess - Inglaterra)
Q'Orianka Quilcher (O Novo Mundo)



ATOR COADJUVANTE
Frank Langella (Boa Noite e Boa Sorte - Good Night and Good Luck - EUA)
Börje Ahlstedt (Saraband)
Jack Nicholson (Os Infiltrados)
Jalil Lespert (O Último Mitterrand)
Walid Afkir (Caché)


ATRIZ COADJUVANTE
Julia Dufvenius (Saraband)
Juliette Binoche (Caché)
Marisa Paredes (Espelho Mágico)
Michelle Williams (O Segredo de Brokeback Mountain)
Zhang Ziyi (2046 - Os Segredos do Amor)



ROTEIRO
Saraband
A Dama de Honra
Eleição - O Submundo do Poder
Espelho Mágico
O Último Mitterrand


FOTOGRAFIA
2046 - Os Segredos do Amor
Eleição - O Submundo do Poder
Miami Vice
O Novo Mundo
Saraband


MONTAGEM
Eleição - O Submundo do Poder
A Dama de Honra
Miami Vice
O Último Mitterrand
Vôo United 93



SOM
Miami Vice
A Dama na Água
2046 - Os Segredos do Amor
Missão Impossível 3
O Novo Mundo



USO DE MÚSICA
A Dama de Honra
A Dama na Água
2046 - Os Segredos do Amor
O Novo Mundo
O Segredo de Brokeback Mountain


PIOR FILME
Crash - No Limite (Crash - EUA, dir. Paul Haggis)

Bálsamo santo

O anjo da harmonia
Gonçalves Dias

Revela tanto amor, tão branda soa
A tua doce voz canora e pura,
Que o homem de a escutar sente no peito
Infiltrar-se-lhe um raio de ventura.

Solta-se a alma das prisões terrenas,
O mundo, a vida, o sofrimento esquece,
E embalada n'um éter deleitoso,
Como Alcion nas águas, adormece!

Da noite a placidez é menos grata
A quem sozinho e taciturno vela,
Quando, perdido n'outros mundos, nota
A meiga luz de fugitiva estrela.

Sensações menos doces, menos vagas,
Desperta o barco leve, que se avista
Ao pôr-do-sol, na extrema do horizonte
Quando n'um mar de luz nos foge à vista.

Das aves o cantar é menos fresco,
É menos triste a fonte que serpeia,
Menos queixoso o mar que enternecido
Beija na praia a cintilante areia.

Vagas na terra, suspiroso arcanjo,
Derramando torrentes de harmonia
Sobre as chagas mortais, - bálsamo santo
Que as mais profundas mágoas alivia.

Vagas na terra, merencória e bela;
Mas quando deste mundo ao céu tornares
Juntarás teus terníssimos acentos
Aos puros sons dos místicos altares.

E os anjos na mansão das harmonias,
Encostados às harpas diamantinas,
Folgarão de te ouvir celestes carmes
Deduzidos em notas peregrinas.

E dirão: - Nunca às plagas do infinito
Subiu mais terna voz, mais fresca e pura!
Se o corpo é de mulher, sua alma é vaso
Onde o incenso de Deus se afina e apura.

No silêncio achar consolo

Como eu te amo
Gonçalves Dias

Como se ama o silêncio, a luz, o aroma,
O orvalho numa flor, nos céus a estrela,
No largo mar a sombra de uma vela,
Que lá na extrema do horizonte assoma;

Como se ama o clarão da branca lua,
Da noite na mudez os sons da flauta,
As canções saudosíssimas do nauta,
Quando em mole vaivém a nau flutua;

Como se ama das aves o gemido,
Da noite as sombras e do dia as cores,
Um céu com luzes, um jardim com flores,
Um canto quase em lágrimas sumido;

Como se ama o crepúsculo da aurora,
A mansa viração que o bosque ondeia,
O sussurro da fonte que serpeia,
Uma imagem risonha e sedutora;

Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncio, e cores, e perfume, e vida,
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus;

Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-to os lábios meus, — mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande
Amo em ti. — Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.
O que espero, cobiço, almejo, ou temo
De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo!
Esta oculta paixão, que mal suspeitas,
Que não vês, não supões, nem te eu revelo,
Só pode no silêncio achar consolo,
Na dor aumento, intérprete nas lágrimas.

*

De mim não saberás como te adoro;
Não te direi jamais,
Se te amo, e como, e a quanto extremo chega
Esta paixão voraz!
Se andas, sou o eco dos teus passos;
Da tua voz, se falas;
O murmúrio saudoso que responde
Ao suspiro que exalas.
No odor dos teus perfumes te procuro,
Tuas pegadas sigo;
Velo teus dias, te acompanho sempre,
E não me vês contigo!
Oculto e ignorado me desvelo
Por ti, que me não vês;
Aliso o teu caminho, esparjo flores,
Onde pisam teus pés.
Mesmo lendo estes versos, que m'inspiras,
"Não pensa em mim", dirás:
Imagina-o, se o podes, que os meus lábios
Não to dirão jamais!

*

Sim, eu te amo; porém nunca
Saberás do meu amor;
A minha canção singela
Traiçoeira não revela
O prêmio santo que anela
O sofrer do trovador!

Sim, eu te amo; porém nunca
Dos lábios meus saberás,
Que é fundo como a desgraça,
Que o pranto não adelgaça,
Leve, qual sombra que passa,
Ou como um sonho fugaz!

Aos meus lábios, aos meus olhos
Do silêncio imponho a lei;
Mas lá onde a dor se esquece,
Onde a luz nunca falece,
Onde o prazer sempre cresce,
Lá saberás se te amei!

E então dirás: "Objeto
Fui de santo e puro amor:
A sua canção singela;
Tudo agora me revela;
Já sei o prêmio que anela
O sofrer do trovador.

"Amou-me como se ama a luz querida,
Como se ama o silêncio, os sons, os céus,
Qual se amam cores e perfume e vida,
Os pais e a pátria, e a virtude e a Deus!"

Recordação

Recordação
Gonçalves Dias

Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada,
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor, piedade! - e os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d'angústias que meu peito oprime.

Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos -, nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastará ainda
Porque de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. - Em tal pensando,
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.