É assim que Wilson Martins caracteriza o romanesco, no livro Imagens da França. Acabo de ler A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e esse calhamaço de mil páginas, de fato, traz algo do espírito que dominou o início do século XX na Europa. É a sensação do mal-estar antes da tragédia - no caso, a Primeira Guerra Mundial. Os sete anos de internação do jovem Hans Castorp num sanatório nos Alpes suíços são marcados por esse mal-estar que culmina na luta, na ausência de diálogo, na perplexidade ante a perda de valores que nortearam o povo europeu durante séculos.
Ouso dizer, entretanto, que, apesar de ser um livro interessante nesse aspecto da representação do espírito de uma geração, A Montanha Mágica não é um grande romance. Ele carece de virtudes essenciais do bom romance, aquelas virtudes em que Balzac e Walter Scott eram mestres. O maior defeito do livro é a falta de ritmo; muitas de suas páginas sofrem de um mal sobre o qual o próprio livro discorre: o tédio. Há muitas passagens tediosas no meio daquelas mais marcantes. Faltou a Mann a humildade e a coragem para depurar a história, aparando-lhe o desnecessário.
A propósito do autor alemão, Otto Maria Carpeaux escreveu, e eu assino embaixo:
"Na verdadde, Thomas Mann é um pensador confuso, é o maior dos escritores de segunda ordem, e a alemanidade não é a essência do seu ser, mas o amor infeliz dum bastante fraco herói de tragédia. Nos romances de Thomas Mann há muitas discussões e muitas reflexões; o leitor desprevenido abre a boca, sufocado sob enormes massas de pensamentos. Mas não há pensamento; em particular, nenhum pensamento original. (...) Não sendo pensador original ou claro, Mann é um grande manejador de pensamentos, o que é a primeira condição do ensaísta. Thomas Mann é um admirável ensaísta. Apenas, é preciso saber que um ensaísta não é um causeur engraçado, mas um escritor sério, cujo pensamento torturado é transfigurado por um raio de poesia. (...) Mann é muito pobre em imaginação, (...) o maior escritor de uma época artificial e decadente, (...) não conhece metafísica nenhuma. (...) Durante toda a longa vida laboriosa, não passou de um pensador confuso." (Ensaios Reunidos - 1942-1978. Org. Olavo de Carvalho)
É um julgamento duro, mas que se há de fazer? A Montanha Mágica é um romance falhado. Não tem o impacto da obra-prima de Mann, a novela Morte em Veneza. Falta-lhe o "raio de poesia" de que fala Carpeaux. Talvez Mann tenha falhado por soberba, pois talento não lhe faltava, como comprova essa linda e dolorosa passagem, na qual os primos Hans Castorp e Joachim Ziemssen passeiam acompanhados de Karen Karstedt, jovem franzina de dezenove anos, muito doente, nos últimos dias de vida:
Subiam lentamente, em fila indiana, porque a trilha aberta a pá não permitia irem lado a lado. Deixando atrás e abaixo as mais altas das casas construídas na vertente, olhavam, enquanto subiam, a paisagem familiar na sua magnificência invernal, que mais uma vez se deslocava na perspectiva e lhes abria um outro aspecto. Dilatava-se rumo ao nordeste, em direção à entrada do vale. Surgia a esperada vista do lago circular, rodeado de bosques, congelado e coberto de neve. Atrás da sua margem oposta, os planos inclinados das montanhas pareciam encontrar-se no solo, e mais além assomavam cumes desconhecidos, sobrelevando uns aos outros, diante do céu azul. Os três contemplaram tudo isso, detendo-se na neve, em frente ao portão de pedra que dava acesso ao cemitério. A seguir entraram, abrindo os batentes de ferro, que estavam simplesmente encostados.
Também no interior acharam trilhas limpas de neve, que passavam por entre as elevações dos túmulos cercados de grades e estufados de neve, esses leitos bem-dispostos e simétricos, com suas cruzes de pedra ou de metal, e com seus pequenos monumentos adornados de medalhões e dísticos. Não se ouvia nem se via ninguém. A calma, o isolamento, a paz do lugar pareciam profundos e íntimos em muitos sentidos. Um anjinho ou menino de pedra, com um boné de neve colocado obliquamente na cabeça, quedava-se em alguma parte no meio das moitas e fechava os lábios com um dedo; podia passar pelo gênio do lugar, quer dizer, o gênio do silêncio, de um silêncio que se afigurava nitidamente como a negação e o antípoda da palavra falada, como um ato de emudecer, portanto, mas absolutamente não era desprovido de conteúdo ou de vida. Para os dois visitantes do sexo masculino aquela seria sem dúvida uma ocasião de tirar os chapéus, se os tivessem levado. Mas, já que andavam descobertos - também Hans Castorp passara a fazê-lo -, limitaram-se a uma atitude reverente, caminhando com o peso do corpo sobre as pontas dos pés e fazendo uma espécie de pequenas mesuras para os lados, enquanto seguiam, em fila indiana, Karen Karstedt, que conduzia o cortejo.
A forma do cemitério era irregular. Começava por estender-se num retângulo estreito em direção ao sul, para depois ampliar-se em dois sentidos, por meio de outros retângulos. Evidentemente se haviam feito necessários repetidos aumentos, tendo sido acrescentadas partes dos campos vizinhos. Mesmo assim, o recinto parecia novamente ocupado na sua quase totalidade, ao longo dos muros tanto como na zona interior, menos apreciada em geral. Era difícil assinalar um lugar onde mais alguém, em caso de emergência, pudesse ser enterrado. Discretamente, os três companheiros caminharam durante longo tempo pelas estreitas trilhas e corredores, entre as sepulturas. Estacavam, de vez em quando, para decifrar um nome com as respectivas datas de nascimento e de morte. As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais diversas: havia ingleses, russos ou ao menos esavos, mas também alemães, portugueses e outros. As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara definitivamente à existência horizontal.
Em determinado lugar, entre a multidão de jazigos, no interior do campo-santo, quase no seu centro, encontraram um pedacinho de terra ainda rasa, do comprimento de um homem deitado, um pedacinho desocupado, entre dois túmulos em cujas pedras estavam penduradas coroas de perpétuas. Detiveram-se ali, a moça um passo à frente dos seus companheiros, e leram as tristes inscrições gravadas nas pedras, Hans Castorp numa atitude de abandono, com as mãos entrelaçadas, a boca aberta e os olhos sonolentos; o jovem Ziemssen em posição de sentido, não somente ereto, mas até um pouco inclinado para trás. E ambos os primos, possuídos de uma curiosidade simultâneas, lançaram um olhar de esguelha para o rosto de Karen Karstedt. Ela percebeu, apesar de toda a discrição, e deixou-se ficar ali, acanhada e humilde, com a cabeça avançada um tanto obliquamente. Com os olhos piscando nervosamente, esboçou um sorriso forçado.
A Montanha Mágica (Der Zauerberg), de Thomas Mann. Tradução de Herbert Caro. Editora Nova Fronteira.