Ontem, num encontro com amigos numa pizzaria, o tema mais discutido foi a situação miserável de boa parte da humanidade, e de como nós, jovens de classe media, poderíamos mudar essa situação. É absolutamente natural que os jovens sonhem muito, sigam utopias e encarem o mundo com indignação e romantismo. Mas é essencial, também, amadurecer e enxergar caminhos que não apelem à revolução ou, pior, ao completo descrédito no ser humano. Nem comunismo, nem anarquismo, nem niilismo.
De onde muitas pessoas crêem não ser possível sair opiniões interessantes e válidas para o século XXI – o Vaticano – chegou-nos, em dezembro de 2005, um belíssimo texto que, em muitos momentos, toca nesse assunto com a sobriedade, a clareza, a inteligência e o encanto que só um intelectual com uma alma muito nobre poderia ter. É a Encíclica Deus Caritas Est, do Papa Bento XVI.
Selecionei o trecho que aborda mais diretamente a proposta que eu gostaria de ter apresentado naquela conversa com meus amigos: é uma proposta cujos efeitos são duradouros, eternos quem sabe, e que não exige a opressão e a violência para ser posta em prática; essa proposta é simples, mas exige paciência, e deve brotar espontaneamente da alma, para que não se torne apenas uma fase romântica na vida do homem, mas uma verdadeira forma de viver em paz e com alegria. Essa proposta é o amor, um amor que se revela na caridade.
A existência do amor, obviamente, não significa que o Estado não seja necessário; este deve ser sempre democrático, um promotor da liberdade e da justiça. Mas o Estado não pode ser onipotente, o que o século XX muito bem comprovou nas figuras de Adolf Hitler, Josef Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro e outros que colocaram suas ideologias acima de todos os outros seres humanos.
Assim, o que Deus Caritas Est nos mostra é a absoluta necessidade de algo muito maior do que a lei do Estado para unir a humanidade em torno da paz, da felicidade, do respeito aos direitos humanos. O grande cineasta Roberto Rossellini disse: "as pessoas hoje só sabem viver em sociedade, não em comunidade; a alma da sociedade é a lei; a da comunidade é o amor".
Segue o trecho que considero importante para essa discussão. O texto completo da Encíclica pode ser encontrado aqui.
Deus Caritas Est
Papa Bento XVI
Justiça e caridade
§ 26. Desde o Oitocentos, vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma objecção, explanada depois com insistência sobretudo pelo pensamento marxista. Os pobres — diz-se — não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça. As obras de caridade — as esmolas — seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos. Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenção das condições existentes, seria necessário criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra e, por conseguinte, já não teriam necessidade das obras de caridade. Algo de verdade existe — devemos reconhecê-lo — nesta argumentação, mas há também, e não pouco, de errado. É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça e que a finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do princípio da subsidiariedade, a própria parte nos bens comuns. Isto mesmo sempre o têm sublinhado a doutrina cristã sobre o Estado e a doutrina social da Igreja. Do ponto de vista histórico, a questão da justa ordem da colectividade entrou numa nova situação com a formação da sociedade industrial no Oitocentos. A aparição da indústria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudança radical na composição da sociedade, no seio da qual a relação entre capital e trabalho se tornou a questão decisiva — questão que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produção e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mãos de poucos, comportava para as massas operárias uma privação de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se.
§ 27. Forçoso é admitir que os representantes da Igreja só lentamente se foram dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade. Não faltaram pioneiros: um deles, por exemplo, foi o Bispo Ketteler de Mogúncia († 1877). Como resposta às necessidades concretas, surgiram também círculos, associações, uniões, federações e sobretudo novas congregações religiosas que, no Oitocentos, desceram em campo contra a pobreza, as doenças e as situações de carência no sector educativo. Em 1891, entrou em cena o magistério pontifício com a Encíclica Rerum novarum de Leão XIII. Seguiu-se-lhe a Encíclica de Pio XI Quadragesimo anno, em 1931. O Beato Papa João XXIII publicou, em 1961, a Encíclica Mater et Magistra, enquanto Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio (1967) e na Carta Apostólica Octogesima adveniens (1971), analisou com afinco a problemática social, que entretanto se tinha agravado sobretudo na América Latina. O meu grande predecessor João Paulo II deixou-nos uma trilogia de Encíclicas sociais: Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e, por último, Centesimus annus (1991). Deste modo, ao enfrentar situações e problemas sempre novos, foi-se desenvolvendo uma doutrina social católica, que em 2004 foi apresentada de modo orgânico no Compêndio da doutrina social da Igreja, redigido pelo Pontifício Conselho « Justiça e Paz ». O marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente colectivização dos meios de produção — asseverava-se em tal doutrina — devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difícil situação em que hoje nos encontramos por causa também da globalização da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicação fundamental, que propõe válidas orientações muito para além das fronteiras eclesiais: tais orientações — face ao progresso em acto — devem ser analisadas em diálogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo.
§ 28. Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de facto que são fundamentais:
a) A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho uma vez: « Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? ». [18] Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. [19] O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação.
A justiça é o objectivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar rectamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado.
Neste ponto, política e fé tocam-se. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo — um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio. É aqui que se coloca a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado.
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis.
A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem.
b) O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. [20] Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo. Este amor não oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma — ajuda esta muitas vezes mais necessária que o apoio material. A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria « só de pão » (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) — convicção que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano.
§ 29. Deste modo, podemos determinar agora mais concretamente, na vida da Igreja, a relação entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade, por um lado, e a actividade caritativa organizada, por outro. Viu-se que a formação de estruturas justas não é imediatamente um dever da Igreja, mas pertence à esfera da política, isto é, ao âmbito da razão auto-responsável. Nisto, o dever da Igreja é mediato, enquanto lhe compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais, sem as quais não se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito tempo.
Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade é próprio dos fiéis leigos. Estes, como cidadãos do Estado, são chamados a participar pessoalmente na vida pública. Não podem, pois, abdicar « da múltipla e variada acção económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum ». [21] Por conseguinte, é missão dos fiéis leigos configurar rectamente a vida social, respeitando a sua legítima autonomia e cooperando, segundo a respectiva competência e sob própria responsabilidade, com os outros cidadãos. [22] Embora as manifestações específicas da caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado, no entanto a verdade é que a caridade deve animar a existência inteira dos fiéis leigos e, consequentemente, também a sua actividade política vivida como « caridade social ». [23]
Caso diverso são as organizações caritativas da Igreja, que constituem um seu opus proprium, um dever que lhe é congénito, no qual ela não se limita a colaborar colateralmente, mas actua como sujeito directamente responsável, realizando o que corresponde à sua natureza. A Igreja nunca poderá ser dispensada da prática da caridade enquanto actividade organizada dos crentes, como aliás nunca haverá uma situação onde não seja precisa a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor.
As múltiplas estruturas de serviço caritativono actual contexto social
§ 30. Antes ainda de tentar uma definição do perfil específico das actividades eclesiais ao serviço do homem, quero considerar a situação geral do empenho pela justiça e o amor no mundo actual.
a) Os meios de comunicação de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno, aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos. Se, às vezes, este « estar juntos » suscita incompreensões e tensões, o facto, porém, de agora se chegar de forma muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um apelo a partilhar a sua situação e as suas dificuldades. Cada dia vamo-nos tornando conscientes de quanto se sofre no mundo, apesar dos grandes progressos em campo científico e técnico, por causa de uma miséria multiforme, tanto material como espiritual. Por isso, este nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o próximo necessitado. Sublinhou-o já o Concílio Vaticano II com palavras muito claras: « No nosso tempo, em que os meios de comunicação são mais rápidos, em que quase se venceu a distância entre os homens, (...) a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens ». [24]
Por outro lado — e trata-se de um aspecto provocatório e ao mesmo tempo encorajador do processo de globalização —, o presente põe à nossa disposição inumeráveis instrumentos para prestar ajuda humanitária aos irmãos necessitados, não sendo os menos notáveis entre eles os sistemas modernos para a distribuição de alimento e vestuário, e também para a oferta de habitação e acolhimento. Superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude pelo próximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro. Justamente o pôs em relevo o Concílio Vaticano II: « Entre os sinais do nosso tempo, é digno de especial menção o crescente e inelutável sentido de solidariedade entre todos os povos ». [25] Os entes do Estado e as associações humanitárias apadrinham iniciativas com tal finalidade, fazendo-o na maior parte dos casos através de subsídios ou descontos fiscais, os primeiros, e pondo à disposição verbas consideráveis, as segundas. E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a dos indivíduos.
b) Nesta situação, nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboração entre as estruturas estatais e as eclesiais, que se revelaram frutuosas. As estruturas eclesiais, com a transparência da sua acção e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor, poderão animar de maneira cristã também as estruturas civis, favorecendo uma recíproca coordenação que não deixará de potenciar a eficácia do serviço caritativo. [26] Neste contexto, formaram-se também muitas organizações com fins caritativos ou filantrópicos, que procuram, face aos problemas sociais e políticos existentes, alcançar soluções satisfatórias sob o aspecto humanitário. Um fenómeno importante do nosso tempo é a aparição e difusão de diversas formas de voluntariado, que se ocupam duma pluralidade de serviços. [27] Desejo aqui deixar uma palavra de particular apreço e gratidão a todos aqueles que participam, de diversas formas, nestas actividades. Tal empenho generalizado constitui, para os jovens, uma escola de vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem não simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si próprios. À anti-cultura da morte, que se exprime por exemplo na droga, contrapõe-se deste modo o amor que não procura o próprio interesse, mas que, precisamente na disponibilidade a « perder-se a si mesmo » pelo outro (cf. Lc 17, 33 e paralelos), se revela como cultura da vida.
Na Igreja Católica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais, também apareceram novas formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado. São formas nas quais se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligação entre evangelização e obras de caridade. Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor João Paulo II escreveu na sua Encíclica Sollicitudo rei socialis, [28] quando declarou a disponibilidade da Igreja Católica para colaborar com as organizações caritativas destas Igrejas e Comunidades, uma vez que todos nós somos movidos pela mesma motivação fundamental e temos diante dos olhos idêntico objectivo: um verdadeiro humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudá-lo a levar uma vida conforme a esta dignidade. Depois, a Encíclica Ut unum sint voltou a sublinhar que, para o progresso rumo a um mundo melhor, é necessária a voz comum dos cristãos, o seu empenho em « fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos ». [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas.
O perfil específico da actividade caritativa da Igreja
§ 31. O aumento de organizações diversificadas, que se dedicam ao homem em suas várias necessidades, explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao próximo ter sido inscrito pelo Criador na própria natureza do homem. Mas, o referido aumento é efeito também da presença, no mundo, do cristianismo, que não cessa de despertar e tornar eficaz este imperativo, muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da história. A reforma do paganismo, tentada pelo imperador Juliano o Apóstata, é apenas um exemplo incipiente de tal eficácia. Neste sentido, a força do cristianismo propaga-se muito para além das fronteiras da fé cristã. Por isso, é muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e não se dissolva na organização assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma. Mas, então quais são os elementos constitutivos que formam a essência da caridade cristã e eclesial?
a) Segundo o modelo oferecido pela parábola do bom Samaritano, a caridade cristã é, em primeiro lugar, simplesmente a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc. As organizações caritativas da Igreja, a começar pela Cáritas (diocesana, nacional e internacional), devem fazer o possível para colocar à disposição os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas. Relativamente ao serviço que as pessoas realizam em favor dos doentes, requer-se antes de mais a competência profissional: os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam fazer a coisa justa de modo justo, assumindo também o compromisso de continuar o tratamento. A competência profissional é uma primeira e fundamental necessidade, mas por si só não basta. É que se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: têm necessidade de humanidade, precisam da atenção do coração. Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo facto de que não se limitam a executar habilidosamente a acção conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenções sugeridas pelo coração, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, além da preparação profissional, requer-se também e sobretudo a « formação do coração »: é preciso levá-los àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5, 6).
b) A actividade caritativa cristã deve ser independente de partidos e ideologias. Não é um meio para mudar o mundo de maneira ideológica, nem está ao serviço de estratégias mundanas, mas é actualização aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade. O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo. Uma parte da estratégia marxista é a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situação de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se de facto ao serviço daquele sistema de injustiça, fazendo-o resultar, pelo menos até certo ponto, suportável. Deste modo fica refreado o potencial revolucionário e, consequentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservação do status quo. Na realidade, esta é uma filosofia desumana. O homem que vive no presente é sacrificado ao moloch do futuro — um futuro cuja efectiva realização permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanização do mundo não pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano. Só se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em todo o lado onde for possível, independentemente de estratégias e programas de partido. O programa do cristão — o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus — é « um coração que vê ». Este coração vê onde há necessidade de amor, e actua em conseqüência. Obviamente, quando a actividade caritativa è assumida pela Igreja como iniciativa comunitária, à espontaneidade do indivíduo há que acrescentar também a programação, a previdência, a colaboração com outras instituições idênticas.
c) Além disso, a caridade não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. [30] Isto, porém, não significa que a acção caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo. Muitas vezes é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar. Sabe — voltando às questões anteriores — que o vilipêndio do amor é vilipêndio de Deus e do homem, é a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. É dever das organizações caritativas da Igreja reforçar de tal modo esta consciência em seus membros, que estes, através do seu agir — como também do seu falar, do seu silêncio, do seu exemplo —, se tornem testemunhas credíveis de Cristo.
NOTAS
[18] De Civitate Dei, IV, 4: CCL 47, 102.
[19] Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[20] Cf. Congregação dos Bispos, Directório para o ministério pastoral dos Bispos Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004), 197.
[21] João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 42: AAS 81 (1989), 472.
[22] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política (24 de Novembro de 2002), 1: L'Ossservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Janeiro de 2003), 42.
[23] Catecismo da Igreja Católica, 1939.
[24] Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, 8.
[25] Ibid., 14.
[26] Cf. Congregação dos Bispos, Directório para o ministério pastoral dos Bispos Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004), 195.
[27] Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 41: AAS 81 (1989), 470-472.
[28] Cf. n. 32: AAS 80 (1988), 556.
[29] N. 43: AAS 87 (1995), 946.
[19] Cf. Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[20] Cf. Congregação dos Bispos, Directório para o ministério pastoral dos Bispos Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004), 197.
[21] João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 42: AAS 81 (1989), 472.
[22] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política (24 de Novembro de 2002), 1: L'Ossservatore Romano (ed. portuguesa de 25 de Janeiro de 2003), 42.
[23] Catecismo da Igreja Católica, 1939.
[24] Decr. sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem, 8.
[25] Ibid., 14.
[26] Cf. Congregação dos Bispos, Directório para o ministério pastoral dos Bispos Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004), 195.
[27] Cf. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 41: AAS 81 (1989), 470-472.
[28] Cf. n. 32: AAS 80 (1988), 556.
[29] N. 43: AAS 87 (1995), 946.
Um comentário:
Que será q vc chama de "niilismo", talvez de forma um tanto pejorativa? Atravessar o momento da crise é fundamental para o processo tanto individual quanto da "humanidade", recusar o que está aí para construir algo q ainda não se vislumbra exatamente é o momento mais criativo q o homem pode alcançar... beijo
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